As coisas andam
tão de cabeça para baixo que ultimamente Gabriela começou a refletir que andar
em retidão passou a ser motivo de estranhamento. Não me venha com esse papo
imbecil de liberdade individual, que isso é conversa para boi dormir. O que
vale mesmo é o respeito pelo próximo, o carinho, a cumplicidade. Deixemos a
liberdade individual para os solitários. Quem tem alguém por perto, quem
assumiu compromisso, honre-o. Tire as suas patas da minha vida, eu não sei por
que motivo você achou que poderia trair tudo que sinto, tudo que vivo por uma
fugacidade qualquer. Acha que vinhos caros, comida boa me atrai? Há quantos
anos nos vimos pela última vez? Hoje proporciono o que quero com o suor de meu
rosto, não preciso das suas esmolas regadas de luxo. Poupe-me de suas palavras inconvenientes.
Há muito que não sou quem procuras. E me sinto orgulhosa disso. Gabriela
levantou a sua cabeça e sorriu com escárnio dessa gente que acha que só porque
é artista tem que proclamar a liberdade dissimulando, enganando o próximo achando-se
incompreendido nessa sociedade plastificada. Se quiser se esbaldar do que a
vida estritamente carnal proporciona, fique à vontade, mas não ponha o peso
disso na Arte. Ela é sagrada e não depende de desvios de conduta para aflorar.
Quem ainda pensa que a Arte nasce da experimentação compulsiva regrediu pelo
menos um século. A Arte nasce do espírito, de nossa massa etérea que sente e
sabe de coisas que não passam pela nossa consciência em primeira mão, mas por
meio da expressão artística. Em nossos corpos estão gravados em DNA de milhares
de anos nossa experiência humana. Precisa mais? Gabriela ajeita a sua bolsa no
ombro e continua o seu caminhar pela cidade, enquanto observa o pôr-do-sol.
Raquel de Souza
Raquel de Souza
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